quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Chohreh Feyzdjou - Boutique






Chohreh Feyzdjou, (1955-96)
Boutique
Product of Chohreh Feyzdjou
(detail)
shelf with glass jars and packages
1995

terça-feira, 11 de novembro de 2008

50 cc of Paris Air



Marcel Duchamp, 1919

domingo, 9 de novembro de 2008

Memorial do Covento - "duas mil vontades"

Baltazar entrou logo atrás do padre, curioso, olhou em redor, sem compreender o que via, talvez esperasse um balão, umas asas de pardal em maior, um saco de penas, e não teve mão que não duvidasse, Então é isto, e o padre Bartolomeu Lourenço respondeu, Há-de ser isto, e, abrindo uma arca, tirou um papel que desenrolou, onde se via um desenho de uma ave, a passarola seria, isso era Baltazar capaz de reconhecer, e porque à vista era o desenho um pássaro, acreditou que todos aqueles materiais, juntos e ordenados nos lugares competentes, seriam capazes de voar. Mais para si próprio do que para Sete-Sóis, que do desenho não via mais que a semelhança da ave, e ela lhe bastava, o padre explicou, em tom primeiramente sereno, depois animando-se, Isto que aqui vês são as velas que servem para cortar o vento e que se movem segundo as necessidades, e aqui é o leme com que se dirigirá a barca, não ao acaso, mas por mão e ciência do piloto, e este é o corpo do navio dos ares, à proa e à popa em forma de concha marinha, onde se dispõem os tubos do fole para o caso de faltar o vento, como tantas vezes sucede no mar, e estas são as asas, sem elas como se haveria de equilibrar a barca voadora, e destas esferas não te falarei, que são segredo meu, bastará que te diga que sem o que elas levaram dentro não voará a barca, mas sobre este ponto ainda não estou seguro, e neste tecto de arames penduraremos umas bolas de âmbar, porque o âmbar responde muito bem ao calor dos raios do sol para o efeito que quero, e isto é a bússola, sem ela não se vai a parte alguma, e isso são roldanas, servem para largar ou recolher as velas, como nos navios do mar. [pág. 67, 68]

(…)Meses inteiros se passaram desde então, o ano é já outro, ouve-se cair a chuva no telhado, há grandes ventos sobre o rio e a barra, e, apesar de tão próxima a madrugada, parece escura noite. Outro se enganaria, mas não Baltazar, que sempre acorda à mesma hora, muito antes de nascer o sol, hábito inquieto de soldado, e fica alerta a ver retirar-se devagar a escuridão de cima das coisas e das pessoas, a sentir aquele grande alivio que levanta o peito e é o suspiro do dia, o primeiro e impreciso traço grisalho das frinchas, até que um leve rumor acorda Blimunda e outro som começa e se prolonga, infalível, é Blimunda a comer o seu pão, e depois que o comeu abre os olhos, vira-se para Baltazar e descansa a cabeça sobre o ombro dele, ao mesmo tempo que pousa a mão esquerda no lugar da mão ausente, braço sobre braço, pulso sobre pulso, é a vida, quanto pode, emendado a morte. Mas hoje não será assim. Um dia e outro e outro dia perguntou Baltazar a Blimunda porque comia todas as manhas antes de abrir os olhos, perguntou ao padre Bartolomeu Lourenço que segredo era este, ela respondeu-lhe uma vez que se acostumara a isso em criança, ele disse que se travava de um grande mistério, tão grande que voar faria figura de pequena coisa, comparando. Hoje se saberá.

Quando Blimunda acorda, estenda a mão para o saquitel onde costuma guardar o pão, pendurado à cabeceira, e acha apenas o lugar. Tacteia o chão, a enxerga, mete as mãos por baixo da travesseira, e então ouve Baltazar dizer, Não procures mais, não encontrarás, e ela, cobrindo os olhos com os punhos serrados, implora, Dá-me o pão, Baltazar, Dá-me o pão, por alma de quem lá tenhas, Primeiro me terás de dizer que segredos são estes, Não posso, gritou ela, e bruscamente tentou rolar para fora da enxerga, mas Sete-Sóis deito-lhe o braço são, prendeu-a pela cintura, ela debateu-se brava, depois passou-lhe a perna direita por cima, e assim libertada a mão, quis afastar-lhe os punhos dos olhos, mas ela tornou a gritar, espavorida, Não me faças isso, e foi o grito tal que Baltazar a largou, assustado, quase arrependido da violência, Eu não te quero fazer mal, só queria saber que mistérios são, Dá-me o pão, e eu digo-te tudo, Juras, Para que serviriam juras senão bastassem o sim e o não, Ai tens, come, e Baltazar tirou o taleigo de dentro do alforge que lhe servia de travesseira.

Cobrindo o rosto com o antebraço, Blimunda comeu enfim o pão. Mastigava devagar. Quando terminou, deu um grande suspiro e abriu os olhos. A luz cinzenta do quarto amanheceu de azul para aqueles lados, assim pensaria Baltazar se tivesse aprendido a pensar coisas destas, mas melhor que pensar finezas que poderiam servir nas antecâmaras da corte ou nos parlatórios das freiras, foi sentir o calor do seu próprio sangue quando blimunda se virou para ele, os olhos agora escuros, e de repente uma luz verde passando, que importavam agora os segredos, melhor seria tornar a aprender o que já sabia, o corpo de Blimunda, ficará para outra ocasião, porque esta mulher, tendo prometido vai cumprir, e diz, Lembras-te da primeira vez que dormiste comigo, teres dito que te olhei por dentro, Lembro-me, Não sabias o que estavas a dizer, nem soubeste o que estavas a ouvir quando eu te disse que nunca te olharia por dentro. Baltazar não teve tempo de responder, ainda procurava o sentido das palavras, e outras já se ouviam no quarto, incríveis, Eu posso olhar por dentro das pessoas.

Sete-Sóis soergueu-se na enxerga, incrédulo, e também inquieto, Estás a mangar comigo, ninguém pode olhar por dentro das pessoas, Eu posso, Não acredito, Primeiro, quiseste saber, não descansavas enquanto não soubesses, agora já sabes e dizes que não acreditas, antes assim, mas daqui para o futuro não me tires o pão, Só acredito se fores capaz de dizer o que está dentro de mim agora, Não vejo senão estiver em jejum, além disso fiz promessa de que a ti nunca te veria por dentro, Torno a dizer que estás a mangar comigo, E eu torno a dizer que é verdade, Como hei-de ter a certeza, Amanhã não comerei quando acordar, sairemos depois de casa e eu vou-te dizer o que vir, mas para ti nunca olharei, nem porás na minha frente, queres assim, Quero, respondeu Baltazar, mas diz-me que mistério é este, como foi que te veio esse poder, senão estás a enganar-me, Amanhã saberás que falo verdade, E não tens medo do Santo Oficio, por menos têm outros pagado, O meu dom não é heresia, nem é feitiçaria, os meus olhos são naturais, Mas a tua mãe foi açoitada e degredada por ter visões e revelações, aprendeste com ela, Não é a mesma coisa, eu só vejo o que está no mundo, não vejo o que é de fora dele, céu ou inferno, não digo rezas, não faço passes de mãos, só vejo, Mas persignaste-te com o teu sangue e fizeste-me com ele uma cruz no peito, se isso não é feitiçaria, Sangue de virgindade é agua de baptismo, soube que o era quando me rompeste, e quando o senti correr adivinhei os gestos, Que poder é esse teu, Vejo o que está dentro dos corpos, e ás vezes o que está no interior da terra, vejo o que está por baixo da pele, e ás vezes mesmo por baixo das roupas, mas só vejo quando estou em jejum, perco o dom quando muda o quarto da lua, mas volta logo a seguir, quem me dera que o não tivesse, Porquê, Porque o que a pele esconde nunca e bom de ver-se, Mesmo a alma, já vista a alma, Nunca a vi, Talvez a alma não esteja afinal dentro do corpo, Não sei, nunca a vi, Será porque não se possa ver, Será, e agora larga-me, tira a perna de cima de mim, que me quero levantar. (…)

Não dormiu ele, ela não dormiu. Amanheceu, e não se levantaram, Baltazar apenas para comer uns torresmos frios e beber um púcaro de vinho, mas depois tornou a deitar-se, Blimunda quieta, de olhos fechados, alargando o tempo do jejum para se lhe aguçarem as lancetas dos olhos fechados, estiletes finíssimos quando enfim saírem para a luz do sol, porque este é o dia de ver, não o de olhar, que esse pouco é o que fazem os que, olhos tendo, são outra qualidade de cegos. Passou a manhã, foi hora de jantar, que é este o nome da refeição o meio-dia, não esqueçamos, e enfim levanta-se Blimunda, descidas as pálpebras, faz Baltazar a sua segunda refeição, ela para ver não come, ele nem assim veria, e depois saem de casa, o dia está sossegado que nem parece próprio para estes acontecimentos, Blimunda vai à frente, Baltazar atrás, para que o não veja ela, para que saiba ele o que ela vê, quando lho disser. [pág. 77 - 82]

Assim nunca chegarei a voar, disse-o em vós cansada, e fez um gesto de tão fundo desânimo que Baltazar teve a instantânea percepção da inutilidade do que estava fazendo, por isso largou o martelo, mas querendo emendar o que podia ser tomando por renuncia, disse, Temos de construir aqui uma forja, temperar os ferros, senão até o peso da passarola os fará vergar, e o padre respondeu, Não se me dá que verguem ou não, o caso é que ela voasse, e assim não pode voar se lhe falta o éter, Que é isso, perguntou Blimunda, É onde se suspendem as estrelas, E como se há-de ele de trazer para cá, perguntou Baltazar, Pelas artes da alquimia, em que não sou hábil, mas sobre isso não dirão nunca uma palavra, suceda o que suceder, Então como fazemos, Partirei breve para a Holanda, que é a terra de muitos sábios, e lá aprenderei a arte de fazer descer o éter do espaço, de modo a introduzi-lo nas esferas, porque sem ele nunca a máquina voará, Que virtude é essa do éter, perguntou Blimunda, É ser parte da virtude geral que atrai os seres e os corpos, e até as coisas inanimadas, se os libertam do peso da terra, para o solo, Diga isso por palavras que eu perceba, padre, Para que a máquina se levante ao ar, é preciso que o sol atraia o âmbar que há-de estar preso nos arames do tecto, o qual, por sua vez, atrairá o éter que teremos introduzido dentro das esferas, o qual por sua vez, atrairá os ímanes que estarão por baixo, os quais, por sua vez, atraíram as lamelas de ferro de que se compõe o cavername da barca, e então subiremos ao ar, com o vento, ou com o sopro dos foles, se o vento faltar, mas torno a dizer, faltando o éter, falta-nos tudo. E Blimunda disse, Se o sol atrai o âmbar, e o âmbar atrai o éter, e o éter atrai o íman, e o íman atrai o ferro, a máquina irá sendo puxada para o sol, sem parar. Fez uma pausa e perguntou como se falasse consigo própria, Que será o sol por dentro. Disse o padre, Não iremos ter ao sol, para o evitar lá estarão as velas de cima, que podemos abrir e fechar à vontade, de sorte que pararemos na altura que quisermos. Fez uma pausa também, e rematou, Quanto a saber como será o sol por dentro, levanta-se da terra a máquina e o resto virá por acréscimo, querendo nós e não o contrariando insuportavelmente Deus. [pág. 96, 97]

(…) Na Holanda soube o que é o éter, não é aquilo que geralmente se julga e ensina, e não se pode alcançar pelas artes da alquimia, para ir busca-lo lá onde ele está, no céu, teríamos nós de voar e ainda não voamos, mas o éter, dêem agora muita atenção ao que vou dizer-lhes, antes de subir aos ares para ser o onde as estrelas se suspendem e o ar que Deus respira, vive dentro dos homens e das mulheres, Nesse caso, é a alma, conclui Baltazar, Não é, também eu, primeiro, pensei que fosse a alma, também pensei que o éter, afinal, fosse formado pelas almas que a morte liberta do corpo, antes de serem julgadas no fim dos tempos e do universo, mas o éter não se compõe das almas dos mortos, compõe-se, sim, oiçam bem, das vontades dos vivos.

Em baixo, começam os homens a descer para os caboucos, onde mal se via ainda. Disse o padre, Dentro de nós existem vontade e alma, a alma retira-se com a morte, vai lá para onde as almas esperam o julgamento, ninguém sabe, mas a vontade, ou se separou do homem estando ele vivo, ou a separa dele a morte, é ela o éter, é portanto a vontade dos homens que segura as estrelas, é a vontade dos homens que Deus respira, E eu que faço, perguntou Blimunda, mas adivinhava a resposta, Verás a vontade dentro das pessoas, Nunca a vi, tal como nunca via a alma, Não vês a alma porque a alma não se pode ver, não vias a vontade porque não a procuravas, Como é a vontade, É uma nuvem fechada, Que é uma nuvem fechada, Reconhecê-la-ás quando a vires, experimenta com Baltazar, para isso viemos aqui, Não posso, jurei que nunca o viria por dentro, Então comigo.

Blimunda levantou a cabeça, olhou o padre, viu o que sempre via, mais iguais as pessoas por dentro do que por fora, só outras quando doentes, tornou a olhar, disse, Não vejo nada. O padre sorriu, Talvez que eu já não tenha vontade, procura melhor, Vejo, vejo uma nuvem fechada sobre a boca do estômago. O padre persignou-se, Graças, meu Deus, agora voarei. Tirou do alforge um frasco de vidro que tinha presa ao fundo, dentro, uma pastilha de âmbar amarelo, Este âmbar, também chamado electro, atrai o éter, andarás sempre com ele por onde andarem pessoas, em procissões, em autos-de-fé, aqui nas obras do convento, e quando vires que a nuvem vai sair de dentro delas, está sempre a suceder, aproximas o frasco aberto, e a vontade entrará nele, E quando estiver cheio, Tem uma vontade dentro, já está cheio, mas esse é o indecifrável mistério das vontades, onde couber uma, cabem milhões, o um é igual ao infinito, É o que faremos entretanto, perguntou Baltazar, Vou para Coimbra, de lá, a seu tempo, mandarei recado, então irão os dois para Lisboa, tu construirás a máquina, tu reconhecerás as vontades, encontrar-nos-emos os três quando chegar o dia de voar, abraço-te Blimunda, não me olhes tão de perto, abraço-te Baltazar, até à volta. Montou a mula e começou a descer a ladeira. O sol aparecera por cima dos cabeços. Come o pão, disse Baltazar, e Blimunda respondeu, Ainda não, primeiro vou ver a vontade daqueles homens. [pág. 130 - 131]

Falemos agora a sério, disse o padre Bartolomeu Lourenço, sempre que poder aqui virei, mas a obra só pode adiantar-se com o trabalho de ambos, foi bom terem construído a forja, eu arranjarei modo de alcançar um fole para ela, não te hás-de fatigar com essa canseira, porem terás de o observar muito bem porque vai ser preciso fazer os foles grandes, de que te darei o risco, para a máquina, faltando o vento na atmosfera trabalharam os foles e voaremos, e tu, Blimunda, lembra-te de que são precisas pelo menos duas mil vontades, duas mil vontades que tiverem querido soltar-se por as não mereceram as almas, ou os corpos as não merecerem, com essas trinta que ai tens não se levantaria o cavalo Pégaso apesar de ter asas, pensem como é grande a terra que pisamos, ela puxa os corpos para baixo, e sendo o sol tão maior como é, mesmo assim não leva a terra para si, ora, para que nós voemos na atmosfera serão precisas as forças concentradas do sol, do âmbar, dos ímanes e das vontades, mas as vontades são, de tudo, o mais importante, sem elas não nos deixaria subir a terra, e se queres recolher vontades, Blimunda, vai à procissão do Corpo de Deus, então numerosa multidão não hão-de ser poucas as que se retirem, porque as procissões, bom é que o saibam, são ocasiões em que as almas e os corpos se debilitam, a ponto de não serem capazes, sequer, de segurar as vontades, já o mesmo não sucede nas touradas, e também nos autos-de-fé, há neles e nelas um furor que torna mais fechadas as nuvens fechadas que as vontades são, mais fechadas e mais negras, é como na guerra, treva geral no interior dos homens. [pág. 149 - 150]

São duas horas da tarde horas da tarde e há tanto trabalho a fazer, não se pode perder um minuto, retirar as telhas, cortar as ripas e os barrotes que não poderem ser arrancados, mas antes disso colocar as bolas de âmbar nos cruzeiros dos arames, abrir as velas superiores para que a luz do sol não caia cedo demais sobre a máquina, transferir para as esferas as duas mil vontades, mil deste lado, mil daquele, não vão puxar umas mais que outras, com o perigo de dar a máquina uma cambalhota no ar, se tiver de dá-la, que seja por razões que não podíamos prever. Tanto trabalho ainda, e tão pouco tempo.

[pág. 199]




Memorial do Convento, José Saramago , 1982

David Hall

http://www.davidhallart.com/
Um dos primeiros trabalhos de Bill Viola que já procurava à um tempo e finalmente encontrei..